terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Chamado Radical-

Bráulia Ribeiro
Começamos a caminhada para dentro da mata, no dia seguinte à partida do barco da dona Dôca. Enfrentando a ameaça das cobras e onças, subimos pirambeiras e atravessamos lodaçais. A mata escura e úmida nos ameaçava. Eustáquio não conseguia matar bicho algum, nem deixava Deni matar, porque ele, como o homem principal da expedição, tinha de segurar a única espingarda velha que tínhamos. Assim, a comida foi acabando e, se não fosse um jabuti que a Telma achou, teríamos passado fome. Lá pelo fim do quarto dia de caminhada, chegamos a uma maloca abandonada. Era linda, alta e bem feita. Parecia coisa de filme. Eu me beliscava para ter certeza de que não estava sonhando. Depois de quatro dias na mata sombria, a maloca parecia uma sofisticada ilha de civilização, uma verdadeira Manhattan. A casa comunitária era alta como um arranha-céu. Dentro havia pedaços de tecnologia jogados pelo chão, flechas, panelas de barro bem guardadinhas debaixo de folhas, e ao redor havia plantações. Dormimos ali, na expectativa do que encontraríamos no dia seguinte. A noite passou devagar. Imaginávamos mil coisas: “E se eles tiverem fugido ao saber que viríamos? Nossa aproximação pela mata deve ter sido para eles como a aproximação de uma frente de exército... E se nunca mais os encontrarmos? E se eles chegarem sorrateiramente e nos capturarem? E se nos estuprarem? E se...?” Acordamos cedo e, como animais urbanos, descemos para o igarapé com escova de dentes, sabonete e toalha de rosto nas mãos para a higiene matinal que acabou sendo a última de muitas semanas. De repente, enquanto escovávamos os dentes, fomos cercados por índios selvagens pintados de vermelho com arcos e flechas em punho. Primeiro um grandalhão desceu com uma criança e gritou para os outros atrás dele. Olhei para ele espantada, achando-o lindo. Estava nu, pintado da cabeça aos pés de um vermelho forte. O cabelo era bem cortado em forma de cuia com um caminhozinho logo acima das orelhas. Tinha brincos de madeira no lóbulo das orelhas e dentes bonitos e limpos. Falava sem parar, ora parecendo bravo, ora alegre. Eu não temia mais nada. O medo deu lugar a uma forte certeza do amor de Deus por nós. Logo chegaram os outros e nos cercaram, certamente querendo saber do que se tratava aquela visita. Percebemos que eles queriam saber o que havíamos levado e logo comecei a latir, tentando anunciar o pobre cachorro que acompanhava a Telma. Havíamos decidido não levar presentes. Depois da minha experiência entre os Paumari do Tapauá concluí que agir com paternalismo cria uma relação patrão–empregado que compromete o sucesso do trabalho missionário... (Trecho do livro Chamado Radical, lançamento da Editora Ultimato)
Para o trabalho que gostamos levantamo-nos cedo e fazemo-lo com alegria. William Shakespeare